segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Passamos bem esse verão




Eu e Adriana checávamos o visto a cada passo enquanto percorríamos o corredor que levava a sala de bagagens do aeroporto de Londres. Os oficiais da imigração tinham procurado pêlo em ovo frito, mas acabaram por carimbar os passaportes.

Passaportes carimbados, a primeira batalha estava vencida.

A partir dali não sabíamos o que nos esperava no país estranho. Que aventuras nos aguardavam nos anos em que viveríamos na Inglaterra?

Depois de passar pelos oficiais, sentíamos que a Providência estava do nosso lado.

Repetíamos uma brincadeira particular que usávamos sempre que vencíamos ou éramos salvos de situações complicadas: passamos bem esse verão.
           
Já com as bagagens, sentamos nas cadeiras do saguão do aeroporto e esperávamos por Lúcio, primo da Adriana que mora em Londres. Ele ia nos ajudar a tomar o ônibus para Leeds, norte da Inglaterra, nosso destino final.

Mas uma coisa me incomodava. Muito.

Depois de tantas horas de viagem e do tormento na imigração, eu percebia que o efeito do meu desodorante tinha ido pras cucuias com passagem só de ida.

Na verdade, eu não era o único a perceber. De todas as cadeiras do saguão de espera, as únicas que permaneciam vagas eram aquelas posicionadas num raio de cinco metros ao nosso redor.

Ate mesmo um francês que se arriscou a sentar próximo exclamou “Mon Dieu” e correu em direção aos toaletes.

Adriana permaneceu firme, sem reclamar, sentada a apenas três cadeiras de distância. Aquilo me comoveu. Foi ali que eu percebi o quanto ela me amava.

Lúcio, que eu ainda não conhecia, chegou. Ele abraçou Adriana demoradamente e, mantendo uma distância segura e dois dedos no nariz, deu-me um emocionado aperto de mão que demorou quase um segundo.

A solução seria tomar um banho da cintura pra cima no lavatório do banheiro. 

Procurei uma camiseta limpa, joguei uma toalha no ombro e atravessei o saguão do aeroporto. Tentei agir com naturalidade - como se estivesse indo à praia, por exemplo.

Eu ensaboava as partes críticas, quando o funcionário encarregado do toalete aproximou-se e começou a reclamar.

- You can’t do that.
- Sorry – era tudo o que eu dizia - I don’t speak English.
- You can’t do that;
- I don’t speak… – tentei repetir.
- You can’t do that..
- I don’t… – falei, já indignado, procurando a toalha que eu havia pendurado em algum lugar.

O funcionário estancou na minha frente. Impedia minha passagem. Avistei a toalha exatamente na parede às costas do sujeito.

Estiquei-me para pegar a toalha por sobre o ombro dele. Ele não se afastou um centímetro.

Consegui pinçar a toalha com dois dedos e a puxei. A tolha zuniu na orelha do inglês. E não é que ele resolveu ficar ali, de braços cruzados, assistindo enquanto eu secava os sovacos?

Terminei minha toilette, joguei a camiseta suada no lixo, vesti a outra limpinha, desviei do cara e só não sai correndo porque ultima coisa que eu queria era suar novamente.

Solucionado, ao menos parcialmente, o constrangedor problema, estávamos prontos para seguir viagem para Leeds.
           
andrzej-szczerski
É estranha a sensação de quem, vindo do terceiro mundo, chega pela primeira vez no país europeu.

Tem-se a impressão de que se deve tomar cuidado com cada movimento. É um pouco como se estivéssemos assistindo a nós mesmos. Parece que qualquer atitude pode ofender alguém ou infringir alguma lei.

Na pequena rodoviária anexa ao aeroporto, eu e Adriana fumávamos um cigarro depois de tantas horas de abstinência. Era o primeiro que fumávamos em área aberta e ficamos olhando um para o outro com a ultima bituca de cigarro na mão.

Não avistando nenhum lugar apropriado para depositar a bagana, vivemos juntos aquele pequeno momento de indecisão: jogam-se cigarros no chão da Inglaterra?

Não se jogam cigarros no chão de pais algum, então a pergunta mais apropriada seria: iríamos presos se o fizéssemos?

Olhamos ao redor e percebemos que sim, havia pontas de cigarro no chão. Centenas, na verdade.

Com embaraço de fumantes e alívio de brasileiros, jogamos fora nossas cúmplices bitucas.

Depois de alguns minutos de espera, o ônibus chegou. Procedimentos de praxe, Lúcio traduzia o que o motorista dizia. Nós sorríamos com a cordialidade de dois bobões.

O motorista sinalizou para que acomodássemos as malas no bagageiro. Com as mãos na cintura, ele supervisionava enquanto eu e Adriana, ajudados por Lúcio, terminávamos de acomodar as malas.

Quando íamos colocar a ultima, o motorista começou a gritar e a gesticular.

Não entendíamos o que estava acontecendo. Ele andava em circulos, olhava para o céu, olhava para o relógio, olhava para nossas bagagens, emendava duas dúzias de palavras e começava tudo de novo.

Meu Deus, que atrocidade teríamos cometido? Que grande merda teríamos feito já no nosso primeiro dia na Inglaterra para deixar o homem possesso daquele jeito?  Voltei a pensar nas bitucas.

O motorista deu dois socos no fundo do compartimento de bagagens e foi só então que entendemos que o nosso crime tinha sido colocar as malas um pouco à direita do local destinado àquelas que seguiriam para Leeds.

Além da sensação de fragilizadade, o desconhecimento da língua nos leva a pensar, ainda que por poucos segundos, que não temos direito a reagir.

Na impossibilidade de falar, não ousamos nem ao menos expressar o nosso descontamento usando formas não-verbais. Mostrar a língua ou o dedo médio, por exemplo, nem nos passa pela cabeça.

Não posso dizer com certeza, mas tenho a impressão de que chegamos mesmo a murmurar alguma desculpa enquanto o cara pegava nossa bagagem e a jogava para o lugar que ele considerava correto.

Era apenas o primeiro dia na Inglaterra, mas aquela já era a segunda pessoa que eu gostaria de encontrar novamente algum tempo depois, quando já estaríamos falando inglês.

O motorista nos apressava. Despedimo-nos de Lúcio e entramos no ônibus. Pela janela assistimos o impaciente motorista acender um cigarro e fumar devagar.
Por fim jogou a bituca no chão, entrou, ajeitou o espelho retrovisor e fechou a porta.

Acenamos para Lúcio.

Quatro horas e meia nos separavam de Leeds. 

Em breve aconteceria a mais estranha experiência, não daquela viagem, mas da minha vida.

Essa você pode conferir aqui.

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