sábado, 4 de outubro de 2014

E se ninguém votar? - Segunda parte




No post anterior eu relatei o divertido debate no Facebook entre duas mulheres cheias de artes e argumentos. Ali eu fiz uma espécie de apologia ao voto – destinada àqueles que acreditam no voto como instrumento de transformação do país.

Hoje cumprirei a prometida análise  - pessoal, insuficiente e hipotética - a respeito da pergunta que originou aquele debate:



E se ninguém votar?

Para tentar responder é preciso considerar duas possibilidades:

1) Chega o dia da votação e ninguém aparece.

2) Chega o dia da votação e aparecem todos, mas não para votar.

Na primeira situação, quais os motivos para ninguém ter dado as caras? Provavelmente descaso, desânimo, desgosto e desesperança.

A (não)atitude significará que esses homens e mulheres cansaram-se, viraram céticos. Não mais acreditam que a atual realidade possa ser alterada pela ação do voto. E resolveram seguir suas vidas, alheios ao que se passa nos gabinetes do poder.

Mas o que será desse dia de votação sem votos? Vamos desenhar juntos o cenário?




Cenário 1 - Desesperança

Dia de eleição. Os postos de votação estão às moscas. Mesários - cansados como os demais - também decidem não votar e juntam-se à meia dúzia de políticos do lado de fora.

Panfletos voam pelas ruas vazias do domingo. No ar, um cheiro de descrença e abatimento.

Maluf, sentado no meio-fio, esfrega uma ficha suja com saliva.

Fidélix, depois de esbravejar contra bichas e maconheiros, senta-se ao lado de Maluf, enrola um baseado e o convida para conhecer uma sauna gay pertinho dali.

Suplicy entra no vazio local de votação, cumprimenta loucos, ladrões e mesários, vota e retorna para casa. Só vai descobrir que ninguém foi votar ao ligar a TV.

- Ãh? – perguntará cinco minutos depois.

Um general, saudoso dos tempos em que nem havia eleitores, empunha um hábito do passado:

- Quando não podiam votar, queriam. Agora que podem, não querem. Tem ou não tem que descer a lenha nessa cambada?

No final do dia todos se entreolham. Pela janela de um carro que passa, alguém ainda encontra ânimo para lhes mostrar a bunda.

- E agora? – pergunta o Serra, aceitando o cigarrinho do Levy.

- Vamos zoar? – sugere o Bolsonaro.

Sim, e agora? Se zoação não for aceita como alternativa, o que podem eles fazer?

Não é tão difícil de adivinhar. Dá até para arriscar o fim desta história.



Depois de alguns momentos de estupefação (porque vergonha eles não sentem, porque vergonha eles não tem), Maluf se levanta do meio fio, enxuga a testa com a ficha suja e abre os braços para dar o veredito:

- Abigos, é dudo dosso.

- Vamos dominar o mundo! – empolga-se o Collor, engolindo o baseado do Levy.

- Menos – pondera o Serra – dominar São Paulo já tá bom.

Assim, se ninguém votar e o motivo de não votar for a desesperança, então teremos realizado o sonho de qualquer político: carta branca para usar e abusar deste país. Vão estacionar as Ferraris em nosso quintal.

Então, muito cedo, chegamos à óbvia conclusão: desistir de política e lavar as mãos apenas deixará caminho livre para as mãos sujas daqueles que da política nunca desistem.

Mas e se o cenário for outro? Se o motivo da abstenção não for a desesperança, mas a indignação?


E se, depois de ter votado, cobrado e ido às ruas, depois de fazer greves e de promover quebra-quebras, o país inteiro chegar à conclusão de que há somente um jeito de demonstrar o que sente? E que esse jeito será levar a sério a hipótese levantada por aquela indignada moça do Facebook, no ano 2014.?


Cenário 2 - Indignação

Não desesperançados, mas indignados, vamos ver o que aconteceria?

Dia da eleição. Todo mundo aparece, mas ninguém vota. Às oito da manhã as ruas já estão cheias. Não há carros porque não é preciso ir longe. Basta abrir a porta de casa e encontrar a multidão.

Desta vez, bandeiras e palavras de ordem não fazem sentidos. Ninguém grita, ninguém se agita, ninguém machuca ninguém.

Porque antes daquela decisão, o véu do óbvio havia caído e o consenso finalmente se fez entre os homens.

Não precisam de governos. Não precisam de líderes. Não precisam de capitalismo, socialismo, comunismo, fascismo, não precisam de parasitismo.

A verdade, tão clara desde o início dos tempos, é uma só. Sobre todos os conceitos, sobre todas as ideologias, homens esquecem doutrinas. Decidem praticar Solidariedade.

Assim, pequenos grupos solidários e grandes grupos solidários interagem na solidária multidão.

Problemas do dia a dia são relatados, são feitas sugestões, soluções são dadas.

Dívidas são quitadas ou perdoadas.

Um oferece-se para curar alguém, outro para ficar com as crianças no final de semana.

Você não tem casa? Casa todos tem que ter e vamos ali resolver.

Não tem pão? Providenciaremos brioches.

No final do dia, pelas ruas do país, já se sabe o que fazer. Amanhã será dia de adensar aqueles grupos. Círculos de três ou quatro mil pessoas se desenharão lado a lado Brasil afora. Não há círculo central, não há líderes, apenas porta-vozes das decisões do grupo.

Nos postos de votação, nos gabinetes, por detrás das envidraçadas portas dos bancos, nos escritórios das grandes construtoras, nos campos improdutivos, na tela da TV, os antigos donos do poder batem cabeça.

Sempre pensaram que não poderia haver nação sem governo. Agora começam a compreender que não há nação sem povo. E o povo ainda nem chegou para escorraçá-los. Se cada um resolvesse lhes sapecar uns beliscões, nem gravatas iam sobrar.

Mas eles podem esperar. O povo lá fora anda ocupado com as necessidades mais urgentes de cada cidadão. Antes da humanidade, o homem.




Urgências pessoais resolvidas, as duzentos milhões de pessoas solidárias entendem que a hora das transformações finalmente chegou.

O que deve ser transformado nós sabemos, mas como transformar o que deve ser transformado?

Como distribuir a renda? Como usar a estrutura dos ex-donos do poder em benefício de todos? O que fazer com os bancos, com a imensidão de terras improdutivas, com a especulação urbana?

Seria o caos? Talvez, mas não necessariamente.

Administradores, engenheiros, médicos, economistas, especialistas em geral, todos fariam parte daqueles grupos.

Por que não pensar que, como seguidores da ideologia da Solidariedade, profissionais de todas as áreas acabarão descobrindo como se organizar?

Por que não pensar que a indignação, a esperança e a ousadia farão mais do que jogos de interesse, favores financeiros e discursos vazios?

Neste nosso saudável exercício de imaginação, o não voto representaria a tentativa de mudar radicalmente a realidade, o arrojo de trilhar um caminho nunca antes trilhado.

Onde daria tudo isso? Quase impossível prever. Imaginar o que aconteceria se ninguém votasse por indignação e desejo de transformação é bem mais difícil do que supor o que aconteceria se a abstenção se desse por desesperança.

O último cenário sugerido (cenário de indignações e solidariedade), quando contrastado com a realidade atual, certamente será descartado como ficção, como sonho, como delírio utópico. Mas não será disso mesmo que precisamos, de uma utopia?

Talvez, um dia, seremos capazes de acreditar que podemos fazer o que deve ser feito, de compreender que essa realidade oferecida é apenas umas das múltiplas realidades possíveis.

Nesse dia vamos enfim entender: admitir uma realidade única seria a negação da própria natureza humana, versátil, criativa e mutável, em busca de revelações.

Volto ao que falei no início do post anterior: a defesa do voto ou não-voto depende de onde você quer chegar.

Buscar apenas o possível é o mais razoável, é trilhar um caminho já conhecido, é sentir os dois pés em solo firme, é votar como se espera que votemos.

Mas se você pensa que o homem pode ser mais do que ele é, que não precisa aceitar a realidade que lhe ofereceram, que a organização do mundo é a mesma há séculos e que assim nunca funcionou muito bem, talvez você deva lutar por aquele dia, o dia em que ninguém votar.


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